A falta de registros confiáveis impede que se saiba ao certo o que aconteceu no final do ano de 1541 na primeira vila fundada no Brasil, São Vicente, erguida numa ilha do litoral de São Paulo. Uma onda gigante teria arrasado o lugar.
O cataclismo que atingiu a vila, então com cerca de 150 habitantes, foi relatado por frei Gaspar da Madre de Deus no século 18, com base nas atas da Câmara. Lendo os textos, o religioso descobriu e registrou: “Hoje é mar o sítio onde esteve a vila”.
Em 1º de janeiro de 1542, a Câmara da vila não tinha onde funcionar e seus integrantes rumaram para uma igreja que resistiu à inundação. “A Câmara voltou a se reunir em uma igreja em 11 de março e 1º de abril”, afirma a historiadora Wilma Therezinha Fernandes de Andrade, então coordenadora do Centro de Documentação da Baixada Santista e professora da Universidade Católica de Santos (Unisantos) – ou seja, a reconstrução não foi imediata, o que mostra o tamanho do estrago.
O historiador Mario Neme, usando as referências de frei Gaspar, escreveu em Notas de Revisão da História de São Paulo que “em fins de 1541, verifica-se a destruição pelas águas do mar de diversas construções da vila, entre as quais a conhecida casa de pedra ou fortaleza, da qual não se volta mais a falar e não é encontrada dez anos depois por Tomé de Sousa, quando visita a capitania de São Vicente”.
De acordo com Neme, com base em esclarecimentos deixados pelo espanhol Alonso de Santa Cruz, “a ilha de Urubuqueçaba [perto da praia de José Menino, em Santos] devia fazer parte das terras marginais, que, cobertas pelo mar em fins de 1541, teriam deixado à mostra apenas a porção mais elevada da rocha”.
O fenômeno, como se vê, não apenas destruiu boa parte das construções. Também alterou a geografia da região, com efeitos que seriam sentidos pelos habitantes do lugar.
Relatos dão conta que uma onda gigante teria deixado submersos dois importantes ícones da vila: a Igreja Matriz, o maior prédio de São Vicente, e o pelourinho, símbolo da autonomia municipal e onde novas leis eram lidas para a população.
Índigenas, mamelucos e os poucos europeus do lugar viviam de uma economia de subsistência, que ganhava fôlego quando os não muitos navios que passavam por ali a caminho do Rio da Prata eram reabastecidos.
Naquela época, explica o arquiteto Rubens Gianesella, as construções na colônia eram precárias, de pau a pique ou de taipa de pilão (com argamassa de terra preparada em forma de madeira e socada com pilão) e cobertas com sapé. Por isso, eram muito frágeis. “Qualquer ressaca mais forte, dessas que vemos invadir calçadas e ruas, poderia ter destruído as edificações da vila”, afirma.
Somente em 1543 os membros da Câmara solicitaram ao governo local o resgate de dois ícones da vila que estavam submersos: os sinos de bronze da Igreja Matriz e o pelourinho. Para as operações, o procurador da Câmara, Pedro Colaço, recebeu 50 reis por providência.
Foram dados ainda 300 reis para Jorge Mendes, responsável por retirar o pelourinho da água, mais 20 reis para transportá-lo até outro local e outros 250 reis para Jerônimo Fernandes, que ficou com a tarefa de reerguê-lo.
“Assim, o conselho gastou 620 reis para fazer o primeiro trabalho subaquático que se tem notícia do Brasil, quem sabe das Américas”, observa Wilma Therezinha. O pelourinho se encontra hoje no Museu Paulista da USP, conhecido como Museu do Ipiranga.
Em 1555, ordenou-se a construção de uma nova Igreja Matriz, cerca de 300 m acima do nível do mar e com os fundos voltados para o Atlântico e muitos acreditam que foi em decorrência desse evento. Ela está no mesmo lugar ainda hoje, depois de uma restauração no século 18.
A onda gigante mexeu com o futuro da vila, fundada por Martim Afonso de Sousa em 1532 – ele se tornaria o donatário da Capitania de São Vicente. O porto, que funcionava como fonte da economia do lugar, mudou-se para onde está até hoje, no norte da ilha, que também é chamada de São Vicente.
A mudança ocorreu a mando de Brás Cubas, fundador de Santos, e fez com que o novo porto se tornasse muito mais atraente para as embarcações – mas a contrapartida foi o crescimento de Santos em detrimento da vila original (hoje, as duas cidades dividem a ilha).
“O porto das naus original foi bastante prejudicado no episódio e passa a não ter mais a função que tinha antes, por causa do assoreamento da baía”, acrescenta o historiador Marcos Braga, então coordenador da Casa Martim Afonso, em São Vicente.
Além do porto, a vila como um todo também mudou. Foi reconstruída um pouco mais acima do nível do mar, ao redor da nova Igreja Matriz, na Praça João Pessoa. Quem caminha pelo centro histórico percebe que o local está em uma parte mais elevada em relação ao nível do mar do que a Biquinha de Anchieta, região de topografia mais baixa, onde a vila se concentrava antes de 1541.
Mas, afinal, o que devastou São Vicente? As opiniões se dividem entre uma grande ressaca e um improvável maremoto. O oceanógrafo Michel Michaelovitch de Mahiques, trabalha com a hipótese de que uma só onda tenha sido responsável pela destruição.
Ele explica que, apesar de o litoral sul do Brasil ser afetado por ressacas, elas são formadas por séries de ondas, ao contrário dos tsunamis – uma única e devastadora onda.
“Os registros históricos são pobres, mas dão conta de que uma única grande onda arrasou a vila”, diz Mahiques. Outra possibilidade, diz o oceanógrafo, é a de que um enorme escorregamento no talude (a escarpa submarina que vai da plataforma continental à zona abissal, 250 km mar adentro) possa ter gerado o fenômeno.
Fonte: Baixada na Rede/Novo Milênio