Um gesto quase único de coerência política em nível nacional completou 40 anos no dia 2: a renúncia de Koyu Iha à Prefeitura de São Vicente. Apenas ele e outro chefe de Executivo, José Nélio de Carvalho, em Ubatuba (SP), deixaram o cargo ao completar os quatro anos de mandato para os quais foram eleitos. Porém, por um artifício, poderiam ter ficado por seis. Para diluir a força dos partidos políticos que surgiam nos anos finais da ditadura pós-1964, o Congresso, com apoio do Governo, promulgou uma emenda à Constituição que estendeu em dois anos os mandatos de prefeitos e vereadores. A maior sigla oposicionista, então chamada PMDB, protestou. Na prática, Koyu foi o único do partido a deixar o mandato no prazo original. Hoje, quando políticos se imaginam acima de partidos e seus programas, que tem a dizer Koyu, de 80 anos, que exerceu mandatos por quase 30 e sempre valorizou a democracia interna?
Na época, o partido dizia ser contrário à prorrogação de mandatos. No entanto, apenas o sr. e mais um prefeito deixaram o mandato no prazo original…
Mais do que isso: o partido exigiu que a gente fizesse um proselitismo, uma campanha contra a prorrogação. Você faz toda uma campanha contra a prorrogação, dizendo que era nefasta para a sociedade a mudança das regras do jogo, inclusive para quem está no Executivo. Você faz uma campanha alicerçado nisso e depois, quando é aprovada a emenda, o partido ficou quieto. (…) É esse tipo de comportamento que eu acho nefasto na política.
O sr. cogitou deixar o PMDB naquela ocasião?
Não, de modo nenhum.
Apesar de o sr. não ter tido acolhimento?
Mas esse acolhimento foi geral, não foi de ordem pessoal. Essa história dentro do partido aconteceu comigo também em 1970. Eu quis ser candidato a deputado. Já era vereador, o partido me vetou. Nem por causa disso eu deixei de estar no partido. Era uma briga interna. Você perdeu a briga interna? Muito bem. A democracia não é quando prevalece a sua vontade.
O sr. tinha dito, na entrevista anterior que tivemos (em maio de 2017), que os partidos estavam numa discussão interna baseada em fisiologismo, não no sentido político.
E continua. Vamos retroceder um pouco: por que um grupo saiu do partido, do PMDB de então, para formar o PSDB? Foi contra o fisiologismo. E a briga primeira foi contra o fisiologismo porque não se discutia naquela época o problema da corrupção institucional, como tem hoje. (…) A briga era muito mais ideológica que de ocupação de cargos. Passou a ser fisiológica.(…) O que é que está acontecendo hoje? Você começa a formar donos de partidos. (…) E foi esse negócio, de grupo fechado dominando o partido, que me fez sair do PSDB, após o presidente do partido, que era o Aécio Neves, entrar naquela fria (foi gravado pedindo R$ 2 milhões ao dono da JBS, afastou-se do comando, mas tomou o cargo de volta). (…)
Com mandato ou não, que contribuição o sr. espera dar, ao menos, para a discussão da qualidade ética do exercício da política?
Eu, por exemplo, na época em que saí (da Prefeitura), cumpri meu mandato e voltei para a Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista, em Cubatão, atual Usiminas) trabalhar. (…) Pouca gente sabe, mas o exercício da vereança naquela época (década de 1960) era gratuito. Na concepção da nova geração, a pergunta: “E, por fora, você ganhava alguma coisa?”.(…) Hoje, se você pegar a vereança, prefeitos, eles sempre ficam fazendo a política como profissão. (…) Vão ficar pedindo um quebra-galho para exercer um cargo em comissão. A política de hoje é uma sociedade de um grupo de amigos, mercantilista, e é completamente contra o que é fazer política.
Em 2018, quando se apresentaram as candidaturas à Presidência da República, na esteira dos resultados da Operação Lava Jato, surgiu um dos candidatos que acabou se destacando, o atual presidente Jair Bolsonaro, falando numa nova política. O sr. acreditava nessa possibilidade?
Não, não, não… Esse negócio de nova política e de campanha política feita contra corrupção, eu só tive decepções. (…) A campanha moralista, dentro do Brasil, ela pode ser vitoriosa, mas ela nunca se consolidou. Aproveitam-se esses fatos para fazer campanha oportunista, e os projetos de interesse nacional, do público, deixam de ser discutidos. Eu vejo isso muito, hoje, com o Bolsonaro. Ele fica fazendo aquela fumaceira dele, falando no Twitter, em entrevistas não oficiais, e a sociedade toda discutindo isso, e os projetos de interesse social não se discutem. E não se cobra.(…)
O sr. acredita que haja motivos ou condições para o impedimento do presidente?
Condições legais, há. O problema todo é (não ter) condições políticas.(…) Eu, por exemplo, hoje sou completamente contra o impeachment desse governo. Bastaria que ele falasse em reforma administrativa, reforma tributária, reforma de Estado, tudo aquilo que ele prometeu, falar nisso. Tentar colocar em votação no Congresso, para ver a pauta de discussão sobre o sistema em nível congressual. Você ficar falando de impeachment, ele (Bolsonaro) fica muito mais acirrando o público interno dele, fica polarizado, para trabalhar contra o impeachment. Aí você tem opositores mais radicais também querendo polarizar a eleição de 2022. Senão, vamos ficar discutindo em 2022 quem era a favor do impeachment, quem era a favor da reeleição. Você vai deixar de fora novamente a discussão do Brasil. (…) O que eu posso dizer, do tempo em que eu estava lá (no Congresso), é que a maior parte dos deputados que eu conheci, no campo do PMDB, o interesse público deles, mesmo do pessoal da situação, era bem maior do que os interesses particulares.
Qual é o ponto de ruptura, em que os políticos tenham perdido esse senso de interesse público?
É um processo histórico. Se você pegar a legislação brasileira, nós fomos fazendo todo um trabalho na Constituição para (o sistema de governo) ser parlamentarista. Quatro, cinco anos para a frente, perdemos o parlamentarismo na formação do centrão. (…) Depois disso,(…) começaram a se formar as emendas parlamentares (…),dispor de tanto de verba e mandar para onde quiser. E, recentemente, (…)veio a emenda impositiva. Então, até ter a emenda impositiva, você tinha que ficar adulando o presidente da República para liberar a tua verba, e você se vangloriar de que fez política porque você conseguiu liberar verba para sua cidade, sua região (…). Tiraram do Legislativo a maior força que tinha, que é de fiscalizar.(…)
Há deputados e senadores que se recusam a dizer em quem votaram para a presidência dessas casas, alegando que o sigilo do voto é importante para não haver represália de quem ganhou…
Mas tem represália de que, um deputado, se a competência dele é fiscalizar o Executivo, de fazer leis? Isso ninguém pode impedir. Então, represália de quê? De dinheiro de quê? Das emendas? (…)De que tipo de perseguição ele está com medo? Isso é um troço de louco.(…)
Na Baixada, por causa da pandemia, se intensificou uma tentativa discussão metropolitana dos problemas. Acredita que os prefeitos tenham mais consciência dessa necessidade?
Consenso, todos eles têm. O grande problema é político. No meu tempo (de diretor executivo da Agência Metropolitana, de 1999 a 2005), tinha sido feito o Plano de Desenvolvimento Integrado. O que eu dizia, quando fui ao Congresso e à Assembleia (Legislativa)? As emendas de deputados só poderiam ser feitas naquilo que estivesse no desenvolvimento do Plano Integrado metropolitano. Não passou, não existe, porque o deputado não quer ficar parado num projeto, ele faz o projeto para a cidade para a qual ele quer mandar dinheiro, e o prefeito não quer fazer.(…)
Muitos acabaram fazendo irmãos, filhos, netos nesse ramo. Nunca ninguém na sua família se interessou em seguir seu caminho?
Um irmão chegou a ser suplente de vereador (em Santos: Kosei, já falecido, de 1977 a 1983), chegou a ser vereador (em substituição a outros). Todos os meus familiares que trabalharam no Poder Público foram por concurso. Eu, quando era prefeito, minha mulher dava aula todo dia. Hoje, (se faz da) política um instrumento mercantilista, ou seja, negócio. Isso que é dolorido.
Reportagem: ATribuna